Categoria: Contos

  • Volta pro refúgio

    Volta pro refúgio

    O meu cavalo já estava no limite e eu precisei passar por uma grande avenida abandonada. Estava a caminho do refúgio leste e devia ser algo em torno de 2 ou 3h da madrugada. Tá, eu sei que foi uma péssima escolha de horário para retornar…

    Ao me aproximar de um viaduto eu vi ao longe aquele ser perambulando. Na sombra da lua crescente ele ou ela parecia um zumbi. Alguém que ficava ainda mais tenebroso por causa das roupas de frio que cobriam até a cabeça. Também, por um saco grande e aparentemente pesado que arrastava pelo asfalto.

    Decidi que deveria continuar, pois era o caminho mais curto. Em qualquer outro atalho ou caminho certamente eu precisaria fazer um descanso e isso não estava nos meus planos. O barulho das ferraduras parecia não incomodar aquele ser que manteve seu ritmo calmo e esforçado. Então, percebi que teria de acelerar ou frear para não dar de cara com aquilo.

    Mesmo com o cavalo já pedindo arrego, optei por acelerar. Uma, duas… somente na terceira esporada é que ele reagiu e acelerou o trote. Coitado! Dava para ouvir a sua respiração ofegante, mas confiei no seu empenho.

    À medida que nos aproximávamos eu não sentia nenhum movimento brusco do sujeito, tampouco um olhar ou pausa. Seu foco era evidente no arraste de algo. Com o encontro inevitável, comecei a reparar melhor e vi que havia alguma coisa se mexendo no saco, ou melhor sobre ele. Não era humano, a menos que esse possuísse quatro patas. O que não me seria algo inédito.

    Sim! Aquele ser completamente agasalhado arrastava uma maca improvisada e sobre ela um cachorro muito grande. Com certeza era um cão. Eu pensei. Nessa época de pouca oferta de proteína, tudo vira alimento, inclusive alguns temem mais os canibais que os zumbis. Eu por outro lado ainda sinto maior ameaça nos infectados ou na falta de antibióticos.

    Passamos por aquele ser, que simplesmente nos ignorou sem apresentar qualquer tipo de ameaça. Ali surgiu um alívio, pois uma briga naquele lugar, correndo o risco de morrer ou perder o cavalo, seria uma grande merda.

    Puxei as rédeas no mesmo instante que passamos pelo individuo. A ideia era aliviar o esforço do meu companheiro e foi mesmo, pois em seguida fomos alvejados por meia dúzia de flechas. Sendo que duas acertaram precisamente o pescoço do cavalo, que se assustou e me derrubou. Depois ele se debateu em vão, se ajoelhou e provavelmente morreu em decorrência dos ferimentos ou outros projéteis, que choveram.

    Sai correndo, algumas flechas fizeram zunido ao passar rente as minhas orelhas até que cheguei a uma casinha. Dessas que provavelmente serviam de base para polícia local. Fiquei ali pensando no que fazer e rapidamente decidi arrastar uma mesa para conter a porta. Estava cansado, mas não consegui pregar os olhos. Em alguns momentos eu ouvi barulho de serra, noutros de machadadas e se não bastasse os caras ainda brigaram para ver com quem ficava com o maior pedaço de carne do pobre equino.

  • Posse do presidente

    Posse do presidente

    Sousa chegou para o trabalho em meio ao tumulto de vários protestos e ruas bloqueadas. Com isso, seu tempo de deslocamento habitual foi maior e ele precisou agilizar seu ritual diário. Tirou o uniforme da mochila, passou o ferro a vapor e se vestiu conforme as regras que aprendera no quartel. Ah sim, também teve que dar uma nova lustrada nas botas e tirar alguns pelos soltos da barba, que insistiam em crescer a cada dois dias.

    ­­— Sentido! — Comandou o superior.

    Iniciava ali o agrupamento de todos que fariam parte da cerimônia de posse do novo presidente do Brasil. O batalhão de Sousa ficou responsável pela segurança da caravana oficial no trajeto até a catedral e de lá até o congresso. Algo que não deveria ser preocupante, se não estivéssemos vivendo naquele contexto de brigas ideológicas.

    Por onde eles passavam alguns, mesmo civis, batiam continência. No começo Everton respondeu, mas depois de um tempo passou a ignorar tais cumprimentos feitos de forma fora de contexto ou protocolo. Já em sua moto, uma Harley Davidson Police Road King, ele colou as luvas, o capacete e a manobrou para frente dos demais. Em seguida abriu a parte da frente do capacete para cima e discursou brevemente.

    — Senhores, a nossa missão de hoje é independente das crenças pessoais. Estamos aqui para proteger vidas e conduzir a civilidade. A formação é mesma que treinamos nas últimas semanas e nenhum tipo de desvio será permitido. Não nos cabe defender nenhum posicionamento ideológico ou partidário. Reforço que tais demonstrações acarretarão punição, com perda dos privilégios que os senhores sabem que tem. Todos de acordo!?

    — Capitão, a manobra delta… — Falava o terceiro sargento novato, quando foi interrompido pelo subtente puxa-saco.

    — Claro que não sargento. Somente a Zeta!

    Muitos riram, mas Sousa se manteve calmo e sério. O tempo quente de Brasília o incomodava e se não fosse a baixa humidade, certamente o suor estaria lhe escorrendo pela testa naquele momento. Ele respirou fundo e concluiu sua fala de forma ditatorial.

    — Quietos! Se concentrem na missão. Não faremos nenhuma manobra fora do combinado e mantenham o planejado, mesma coisa para as contingências. Vamos, em posição! O presidente está entrando no carro.

    Motores ligados, o cheiro de gasolina e as motos se posicionaram a frente, nas laterais e atrás do SUV preto e fortemente blindado. O caminho até a catedral não apresentou nenhuma ameaça ao comboio. Alguns se manifestaram com cartazes, outros faziam sinal de arminha com os dedos. Muitos simplesmente vaiavam e a grande maioria celebrou. Além disso, nenhuma manifestação de violência se percebeu no caminho até a catedral.

    No caminho de volta uma das motos teve problema e a parte de trás do comboio ficou parcialmente desprotegida. A manobra de contingência foi aplicada, mas não foi suficiente para conter a massa de pessoas que se aproximou do SUV na chegada ao planalto.

    Sousa recebeu o aviso no rádio e junto dos demais seguranças e oficiais agilizou a descida do presidente e vice. Na lembrança, ficou a ajuda prestada a uma mulher de muletas, um índio de sunga vermelha que abraçou o presidente e a Marina. Uma menina, com pouco mais de 3 anos que vestia a camiseta amarela da seleção e praticamente foi jogada para o presidente.

    Com a ajuda dos assessores e um bom acordo com os pais a menina foi carregada o colo prelo próprio chefe do executivo. A foto com ela estampou a maioria das matérias ao longo daquela primeira semana do ano.

  • Fórmula 1 em 2035

    Fórmula 1 em 2035

    O dia amanheceu nublado em Abu Dhabi e Enzo Ribeiro acordou aflito com a corrida. Sua noite foi de pouco sono onde estava nitidamente preocupado. Seria sua estreia na nova formula 1 e como tem se noticiado, ele é “A Grande promessa do Brasil” para essa temporada.

    O Fato de estar nublado pode impactar o novo sistema de carregamento dos veículos, que desde 2030 possuem motores 100% elétricos. Sendo o sistema de recarga solar do autódromo um dos diferenciais. Outro detalhe importante é o carregamento por indução, onde em determinados pontos da pista ocorre a recarga das baterias dos veículos.

    – É muito legal ver em funcionamento um sistema que até então só podia ser visto nos games, alguém ainda lembra do Top Gear 3000 de 1995? Era nessa pegada, meu pai conta que jogou muito. – Comentou Enzo para os repórteres.

    Pontualmente, as 16h00 o xeique Omar Ali Youssef faz o brinde e as luzes do semáforo de largada se acendem. Inicia-se ali o tradicional período de 10 minutos que antecede a volta de apresentação. Enzo larga em terceiro e ficar atrás do piloto da pole, lhe garante uma posição estratégica.

    Os técnicos das equipes começam a se movimentar pas os boxes e as luzes mudam, indicando 5 minutos. As mãos de Enzo apertam incessantemente o couro sintético do volante. Algumas luzes do painel piscam e o marcador da bateria exibe carga total. O suor ultrapassa a camiseta e ele sente o macacão molhado nas costas. Ali um filme passa em sua cabeça, mas ele foca nos dias que treinou nos simuladores.

    Vem as auzes de 3 minutos e Enzo lembra do apoio que recebeu de sua equipe, mas seu pai é figura central em seus pensamentos. “Será que o velho vai ficar feliz se eu chegar entre os cinco primeiros?” afoito, ele pensa. Um pingo de suor cai em seu olho esquerdo. Ele solta as mãos dos volante e precisa alongar os dedos para aliviar a tensão. Em seguida, abre a viseira do capacete e consegue secar o olho.

    Mais duas luzes se apagam e ele lembra que ainda faltam longos 60 segundos. Então ele fecha a viseira do capacete, reposiciona as mãos no volante e percebe que a carga da bateria foi para 98%. Surge a preocupação com uma possível fuga de energia e ele avisa no rádio. O engenheiro chefe lhe tranquiliza:

    – É normal cara, as vezes nesses 10 minutos os carros podem perder até 3 ou 4% da carga. Respira e acelera!

    Ele mal consegue responder e solta apenas um tímido “ok, obrigado”, que a interferência e a estática quase abafam por completo. A sua cabeça tenta processar o que lhe foi dito e outras luzes se apagam indicando que faltam 15 segundos. Ele se lembra do primeiro beijo em Sophia, sua atual namorada e vem uma excitação.

    A Adrenalina começa a ser liberada em seu organismo, o coração salta a uma frequência de 120, 125… 130. As luzes verdes surgem e eles largam para volta de apresentação. A cada curva o vento refresca e o suor se torna imperceptível. O carro está bem ajustado e o Enzo se sente confiante para mais um pódio em sua carreira.